Estaciona o Volkswagen cinzento à frente
da paragem de autocarro. Respira fundo, acende mais um cigarro e veste o blazer. Mais uma noite a cantar para turistas, mais uma noite de profundo cansaço e
frustração. Ao fim de cerca de quinze anos a trabalhar no mesmo restaurante,
está farto. Desejava poder viver só dos concertos, ou pelo menos poder
cantar apenas em casas de fado onde o silêncio é respeitado. É difícil cantar
“com a alma” quando, para além das guitarras, é acompanhado pelo som indiferente
de copos, talheres e vozes de classe média a conversar em diversas línguas.
As suas
noites são sempre iguais. Umas voltas pelo bairro nos intervalos, uma tosta de
queijo brie e presunto, um pouco de fado vadio, os diversos conhecidos que vai
coleccionando desde que nasceu, um café e água das pedras ou uma coca-cola aqui
e ali. As suas noites são sóbrias e por isso tornam-se aborrecidas, porque é
aborrecido ver o mundo ficar ébrio e continuar lúcido. Mas tem que ser, e tem
orgulho disso – ter saído da loucura de confundir os dias e as noites e nada
mais lhe importar para além dos momentos de puro êxtase – e conseguir manter-se
sóbrio. Já lá vão muitos anos.
Cresceu
numa família de fadistas – por vezes as comparações são insuportáveis – e
apesar de ser considerado da “nova geração”, segue todas as regras e tem a
maioria dos preconceitos dos fadistas antigos. De vez em quando é tomado pela
insegurança e pelos seus medos, todos os dias luta contra as vozes que o
impedem de se mexer, de tomar decisões. Questiona todas as suas escolhas e pisa
sempre o palco com a sensação de que é a última vez. Há quem o considere
arrogante, mas é apenas uma capa protectora – porque as críticas afectam-no,
sim, mas o maior crítico, o maior inimigo, é ele próprio.
Ao fim da
noite respira de alívio e voa veloz pela marginal fora. Não volta para casa sem
passar na roulotte, no McDonald’s ou numa bomba de gasolina, e adormece a ver
um filme qualquer escolhido ao acaso no videoclube da MEO.