domingo, 25 de dezembro de 2011

O Profeta


Miguel Ângelo é uma figura peculiar, que não passa indiferente. Extremamente magro, usa sempre turbantes na cabeça – às vezes pretos, às vezes azuis turquesa ou rosa “da cor dos anjos” – uma vara com guizos e as vieiras dos peregrinos do caminho de Santiago, e óculos escuros “para se proteger de maus-olhados”, que só tira na presença de alguém que ganhe a sua confiança – e vale a pena sondar aqueles olhos azuis-claros, “que viram os céus e os infernos“. Fuma uma mistura mal cheirosa de tabaco, haxixe, pimenta e outras ervas. Assobia e canta alto constantemente, coisas inteligíveis que ninguém compreende.

 Quando começámos a conversar, há muitos anos atrás, perguntei-lhe de onde era. “Do sítio onde a terra mexe”, foi a sua resposta. Mais tarde, muito mais tarde, disse-me que era dos Açores, e falou da solidão e das cores de S. Miguel. Durante alguns anos via-o regularmente, às vezes aparecia no Bairro Alto ao fim da noite, ou pelo Largo Camões e do Chiado à tarde. Toda a gente o achava louco, mas mesmo os mais cépticos acabavam por sucumbir ao seu charme.

 Dizia ser padre e estar em Lisboa com uma missão que, segundo ele, lhe foi dada pelo Papa João Paulo II. Nunca disse que missão era essa. Afirmava ser descendente dos Ávila e de Jesus Cristo. Gostava de falar acerca de anjos e de política, e conspirava acerca do Papa Ratzinger e de um novo domínio germânico.

 Um dia, um amigo encontrou-o na Rua das Portas de Santo Antão, e Miguel Ângelo fez-lhe um comunicado: a sua missão em Lisboa estava concluída e tinha que partir para o Algarve, numa nova missão… encontrar  Maddie McCann (!). E desapareceu de Lisboa durante cerca de dois anos, nunca mais ninguém o viu.

 Há dois meses atrás, estava eu na Rua da Barroca com o meu amigo que o tinha visto pela última vez, quando ouvimos uns guizos e uma voz a cantar. Ao longe vimos surgir uma figura toda de negro, de turbante na cabeça, botas de combate, óculos escuros e a vara com as vieiras do caminho de Santiago, qual ninja cristão em marcha triunfal. Parou junto a nós e tirou os óculos. Perguntou-nos pelos nossos trabalhos, pela vida. “E a sua missão?”, quisemos saber. “Está concluída. Pobre rapariga”, disse com um ar muito sério. “Mas só estou em Lisboa de passagem. Tenho uma nova missão.” Não nos disse qual era, e desapareceu de novo.

 Entretanto, fala-se da nova europa de Merkel e Sarkozy, e não pude deixar de sorrir com carinho ao lembrar-me das teorias de conspiração do meu profeta. “O poder será de novo preto, vermelho e amarelo.” Talvez tivesse razão.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Haxe? Coca?

 - negócio cigano em tempos de crise

 Sempre foi fácil encontrar fumos que fazem rir nas ruas do Bairro Alto. Até há cerca de dois/três anos atrás, ao percorrer a Rua da Atalaia dávamos de caras com os rapazes do bairro, com os bolsos cheios de haxixe para despachar. Hoje em dia esses negócios são feitos de outra forma, mas surgiu no bairro uma tribo de ciganos, que anda em pequenos grupos pela Rua do Norte, Travessa da Queimada e Rua Diário de Notícias, que se aproveita da fama do bairro para uma burla que rende alguns trocos.

 "Haxe? Coca?", perguntam aos estrangeiros que passam. É raro meterem-se com portugueses, não seria a primeira vez que um burlado se revolta contra eles. O esquema é simples: dão a cheirar haxixe de qualidade, mas aquilo que passam para as mãos dos clientes é caldo knorr ou pasta de louro.

 Já vi a PSP revistar estes tipos à frente da Tasca dos Canários, já soube de casos que foram parar à esquadra. Mas a polícia nada pode fazer, quando aquilo que se vende não é realmente droga.

 Em tempos de crise vale tudo e cada um safa-se como pode. Admiro-lhes a ousadia, que de vez em quando não se livram de um par de murros - e não pagam imposto sobre os lucros. Eles sim, dominam o significado de thinking outside the box.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O meu reino por um croissant de chocolate



Pequeno segredo que todos os moradores e frequentadores matinais conhecem: os croissants de chocolate da Panificação das Mercês são os melhores de Lisboa. E custam apenas sessenta cêntimos. Mas não duram muito tempo, para os apanhar é preciso ir cedo. Cusquices do bairro e o desfile de cãezinhos giros dos moradores são um bónus para a boa disposição.


sábado, 17 de dezembro de 2011

Requiem por um Pontapé na Cona - R.I.P. Arroz Doce

 Sempre foi um dos locais de romaria preferidos no Bairro Alto - durante muitos anos, desde que comecei a sair à noite, tudo começava ali, com uma bifana cheia de molho e o famoso Pontapé na Cona, segredo religiosamente guardado pela D. Alice - quem de nós nunca tentou, pelo menos uma vez, um choradinho para lhe arrancar a receita?


 O Sr. de Bigode (nunca soube o seu nome) que lá trabalhava avisou-me do fecho do spot lendário, mas entretanto passei lá à porta e vi os cartazes a anunciar as bebidas. Ontem, invadida pela nostalgia e estando na companhia de amigos de fora de Lisboa que nunca tinham provado a bebida, decidi entrar.


 O aspecto geral permanece semelhante, para os mais desatentos. Mas Freud já não nos observa a partir do seu lugar privilegiado, e os cartazes de peças e concertos já não cobrem as paredes, que agora estão tristemente cinzentas. Resta-nos a velha jukebox e os azulejos azuis e brancos com cenas de boémia para nos lembrar que não estamos numa desoladora e anónima tasca de bairro.


 A música dos Beatles e dos Doors deu lugar aos hits actuais, e atrás do balcão não estão os três velhinhos amorosos que nos contavam histórias e refilavam quando dávamos notas grandes para pagar uma imperial - no seu lugar estão brasileiros com um cabedal de impôr respeito.


 O Pontapé na Cona já não está num garrafão à vista de todos. Na verdade, o mais terrível é isso - o Pontapé já não está em lado nenhum. A bebida mais famosa do Bairro Alto desapareceu. Ao levar o copo à boca, o que saboreei foi uma mistura de cerveja com coca-cola. Senti-me intrujada e tornei-me insuportável o resto da noite, sem me conseguir calar acerca dos tempos áureos em que as ordes invadiam aquele velho tasco, para uma bifana bem aviada e uma bebida que ninguém conseguia perceber ao certo o que levava.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Dona Rosa

Saiu da sua aldeia em Trás-os-Montes a meio da adolescência, para trabalhar como criada em casa de uma família queque do centro de Lisboa. Nunca tinha visto o mar, e ao início sentia-se perdida no meio da grande cidade, horrorizada e maravilhada.

Ninguém sabe ao certo quanto tempo trabalhou para essa família - há anos da sua história que ficarão para sempre por contar - mas mais tarde casou, e abriu um café que em tempos tivera fama duvidosa, devido à antiga gerência (mas isso é outra história, que contarei um dia). Um café modesto, com três mesas grandes e uma pequena, na Travessa dos Inglesinhos.


Hoje é o típico café de bairro de Lisboa: não faltam calendários, relógios e cachecóis do Benfica, e que ninguém se atreva a defender o Sporting - é estar a pedir uma discussão com a D. Rosa e com a maioria dos clientes habituais, sempre prontos a tirar os olhos da Sport TV para saltar em defesa do glorioso. É essencialmente frequentado por moradores da zona - vale a pena assistir ao pequeno-almoço das velhotas (os verdadeiros jornais do bairro) que saem com os seus cães pela manhã - mas também por homens das obras, à hora de almoço, em busca de uma sandes e uma imperial, professores e alunos de escolas das redondezas, rapazes do bairro (ver post anterior)que fumam os seus canhões à porta, ao final da tarde, e fauna boémia diversa à noite, especialmente ao fim-de-semana.


D. Rosa sofre terrivelmente das varizes, das articulações dos joelhos e de colestrol. Encontra-se regularmente sentada na mesa do fundo, com o Correio da Manhã à frente, a conversar com os seus fregueses - no entanto, é capaz de despachar vinte pessoas em cinco minutos, se for necessário. Não tem medo de ninguém, não tem papas na língua e não tem medo de impor respeito: vai mas é dormir e dou-te um soco nas ventas num tom de voz especial é o suficiente para pôr qualquer matulão em sentido.


Lembrei-me dela porque é hora de almoço e as tostas mistas da D. Rosa são as melhores que já comi na vida. Não só pelas quantidades generosas de queijo e fiambre e da manteiga a pingar. O sabor dessas tostas tem um quê de rebeldia - a primeira imperial, conspirações e amores, má-língua e golos históricos.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Rapazes do Bairro, ié ié ié

 - ou como se cresce no coração da cidade
Conhecem aquelas famílias dos bairros do centro de Lisboa? Aquela espécie muito particular de brinco-na-orelha, fato-de-treino e cortes de cabelo à Cristiano Ronaldo? O Bairro Alto não é excepção à regra – estes espécimes são uma larga percentagem dos moradores deste bairro alfacinha. E se durante muitos anos a sua existência me passou ao lado, por um certo medo e – admito – preconceito, mais tarde acabei por travar conhecimento e ganhar afeição a alguns. Com os anos, muitos têm desaparecido. Relembro-os ao percorrer as ruas, pergunto-me como estarão agora.

 Por regra, é ainda na pré-adolescência que contactam pela primeira vez com drogas. Alguns ficam-se pelos charros, outros passam a coisas mais pesadas. Muitos acabam (pelo menos em certo ponto da sua vida) por se tornar pequenos traficantes. Habitualmente são filhos de várias gerações de classes baixas, entregues a si próprios – às ruas – desde muito novos.

 Em miúdos vemo-los em bando a jogar futebol na Rua da Atalaia. Depois crescem, deixam a escola, jogam snooker no Clube Rio de Janeiro e bebem imperiais nos cafés das redondezas. Na sua maioria são desempregados ou têm rendimentos mínimos. Marginais, sim – pessoas que nunca tiveram quem puxasse pelas suas capacidades, pela sua ambição. Como o rapaz dos dentes tortos e sorriso doce, criado pela mãe, solteira e alcoólica. Detido por posse de droga,depois de uma pena suspensa e uma ida a reabilitação, a última oportunidade que o juiz lhe concedeu foi a de ir trabalhar para a zona do Douro, para a quinta de familiares que o rapaz dos dentes tortos mal conhecia. Encontrei-o no Príncipe Real pouco antes de partir – tinha medo, sabia que a adaptação ia ser difícil, mas sentia o verdadeiro desejo de mudar a sua vida, de ter vida para além da Rua da Atalaia. Nunca mais ninguém o viu ou falou com ele. Ou como o rapaz com nome de penteado, que eu costumava encontrar na Travessa dos Inglesinhos, a envelhecer precocemente devido aos efeitos da droga – tem passado grande parte da vida atrás das grades e lá ficará por mais uns anos, a tentar curar-se e a recair. Ou o rapaz com nome de rena, com ar de modelo bad-boy da Calvin Klein – começou a vender haxixe e marijuana aos doze anos, tirou um curso profissional numa área em que raras vezes arranjou trabalho e só agora, dez anos mais tarde, começa a endireitar a sua vida, trabalhando numa equipa de segurança nocturna. E tantos outros – tantos que se mudaram para a Linha de Sintra e Margem Sul, atraídos pelas rendas baixas, e continuam a manter o mesmo estilo de vida. 

 Mas por mais que o Bairro Alto os maltrate, a grande prova de amor é vê-los, no início do Verão, a enfiarem-se nos fatos de lycra e lantejoulas, a ensaiar no Clube Rio de Janeiro – não há ninguém mais orgulhoso do seu bairro. E no dia de ir marchar à Avenida da Liberdade, o seu grito de guerra ao descer a Travessa da Queimada é visceral: Ié ié ié, Bairro Alto é que é!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O Brasileiro

Atravessou o atlântico para conhecer as suas raízes. Depois de acabar a licenciatura em saxofone, S. Paulo e o Brasil não tinham nada para lhe oferecer. Fez as malas e partiu para a terra do avô, uma pequena aldeia no Minho. Estranhou o frio e surpreendeu-se com a simpatia com que foi recebido.

 A viagem de duas semanas prolongou-se, tornou-se num percurso iniciático. Queria conhecer mais do país e do povo que o começavam a conquistar. Depois de algum tempo a viajar pelo norte, partiu rumo a Lisboa.

 Começou a participar em jam sessions, a frequentar os circuitos de música ao vivo do Bairro Alto e de Alfama. Arranjou trabalho como professor de Formação Musical numa escola pública, alugou um quarto perto da Rua do Alecrim. Não estava preparado para deixar Lisboa, estava seduzido pela luz, pelas pessoas, pelas noites de boémia.

 Algum tempo depois começou a tocar blues e rock, com outro brasileiro na percussão e um americano na voz e guitarra. A energia entre os três era algo da ordem da magia, era a primeira vez que tocava em bares e todo o público prestava realmente atenção – não só prestava atenção, era visivelmente contagiado. Quem passasse à porta de onde eles estivessem a tocar, veria um bar à pinha, toda a gente a dançar e a rir, ancas, pés, braços em desalinho. E as noites acabavam invariavelmente no Miradouro de S. Pedro de Alcântara, a beber cervejas dos indianos e a conversar com as miúdas que sempre os seguiam depois da música acabar. Elas não escondiam o seu espanto ao ouvi-lo falar – a pele muito branca, o sorriso doce, o cabelo encaracolado, os óculos sem armação, as camisas de betinho e o jeitinho tímido de falar com as mulheres não lhe conferem o ar de típico brasileiro.

 Antes de partir, não sabia o que ia encontrar. Hoje sabe que o que encontrou dentro de si era o seu fado – uma parte da sua alma que é mais ginjinha que caipirinha, que chora com as guitarras de Lisboa.