quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Rapazes do Bairro, ié ié ié

 - ou como se cresce no coração da cidade
Conhecem aquelas famílias dos bairros do centro de Lisboa? Aquela espécie muito particular de brinco-na-orelha, fato-de-treino e cortes de cabelo à Cristiano Ronaldo? O Bairro Alto não é excepção à regra – estes espécimes são uma larga percentagem dos moradores deste bairro alfacinha. E se durante muitos anos a sua existência me passou ao lado, por um certo medo e – admito – preconceito, mais tarde acabei por travar conhecimento e ganhar afeição a alguns. Com os anos, muitos têm desaparecido. Relembro-os ao percorrer as ruas, pergunto-me como estarão agora.

 Por regra, é ainda na pré-adolescência que contactam pela primeira vez com drogas. Alguns ficam-se pelos charros, outros passam a coisas mais pesadas. Muitos acabam (pelo menos em certo ponto da sua vida) por se tornar pequenos traficantes. Habitualmente são filhos de várias gerações de classes baixas, entregues a si próprios – às ruas – desde muito novos.

 Em miúdos vemo-los em bando a jogar futebol na Rua da Atalaia. Depois crescem, deixam a escola, jogam snooker no Clube Rio de Janeiro e bebem imperiais nos cafés das redondezas. Na sua maioria são desempregados ou têm rendimentos mínimos. Marginais, sim – pessoas que nunca tiveram quem puxasse pelas suas capacidades, pela sua ambição. Como o rapaz dos dentes tortos e sorriso doce, criado pela mãe, solteira e alcoólica. Detido por posse de droga,depois de uma pena suspensa e uma ida a reabilitação, a última oportunidade que o juiz lhe concedeu foi a de ir trabalhar para a zona do Douro, para a quinta de familiares que o rapaz dos dentes tortos mal conhecia. Encontrei-o no Príncipe Real pouco antes de partir – tinha medo, sabia que a adaptação ia ser difícil, mas sentia o verdadeiro desejo de mudar a sua vida, de ter vida para além da Rua da Atalaia. Nunca mais ninguém o viu ou falou com ele. Ou como o rapaz com nome de penteado, que eu costumava encontrar na Travessa dos Inglesinhos, a envelhecer precocemente devido aos efeitos da droga – tem passado grande parte da vida atrás das grades e lá ficará por mais uns anos, a tentar curar-se e a recair. Ou o rapaz com nome de rena, com ar de modelo bad-boy da Calvin Klein – começou a vender haxixe e marijuana aos doze anos, tirou um curso profissional numa área em que raras vezes arranjou trabalho e só agora, dez anos mais tarde, começa a endireitar a sua vida, trabalhando numa equipa de segurança nocturna. E tantos outros – tantos que se mudaram para a Linha de Sintra e Margem Sul, atraídos pelas rendas baixas, e continuam a manter o mesmo estilo de vida. 

 Mas por mais que o Bairro Alto os maltrate, a grande prova de amor é vê-los, no início do Verão, a enfiarem-se nos fatos de lycra e lantejoulas, a ensaiar no Clube Rio de Janeiro – não há ninguém mais orgulhoso do seu bairro. E no dia de ir marchar à Avenida da Liberdade, o seu grito de guerra ao descer a Travessa da Queimada é visceral: Ié ié ié, Bairro Alto é que é!

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