Há qualquer coisa de errado, de partido, nos
angariadores daquela casa de fados. Todos têm uma história trágica, e abordar
turistas nas ruas pela promessa de 2,50 euros por cabeça é, por vezes, a
única forma de terem uma obrigação que lhes mantenha a cabeça ocupada e o
sangue-frio.
Ele
continua a viver na mesma casa onde nasceu, perto do Largo do Carmo, mas evita
passar lá muito tempo, para não ver o desgosto nos olhos dos pais. Custa-lhe
vê-los tão velhos, tão desiludidos, tão preocupados. É fácil de o encontrar a
vaguear pelo Chiado e pelo Rossio durante o dia, à espera da hora de ir
trabalhar.
Foi a droga
que lhe levou tudo. A inteligência, a auto-estima, a vontade de fazer o que
quer que seja. Era bom aluno, mas não acabou o secundário. Entrou em
reabilitação diversas vezes, mas recaiu sempre. Esteve anos desempregado, a
valer-se dos amigos para fumar, dos pais para comer, dos conhecimentos para
beber um copo à noite, de toda a espécie de esquemas para arranjar droga. A cocaína e a heroína destruíram-no por completo –
fisicamente, só agora começa a mostrar sinais de envelhecimento, mas por dentro
é uma ruína. Procurou o amor em diversas mulheres – todas elas mais velhas,
seguras de si, independentes, controladoras. Em nenhuma encontrou o carinho e o
apoio que precisava. Ao longo dos anos, vejo o seu olhar tornar-se mais duro e
frio, e é cada vez mais raro ver-lhe um sorriso – excepto quando está a trabalhar, que a simpatia é um requisito inevitável no que faz.
Em tempos,
quando o conheci numa tarde cinzenta no Jardim do Adamastor, lia textos
budistas e ainda tinha esperança de recuperar e construir uma vida. Ele queria
ter filhos, ter um lar. Hoje vê-se que a esperança o abandonou por completo – a
sua religião é a sobrevivência: os 2,50 euros por cada pessoa que convence a
ouvir uns fados, o cigarro cravado aos conhecidos que encontra enquanto
trabalha, as passas num charro que lhe venha parar às mãos, a próxima linha
branca tomada na casa de banho de um bar, os copos de whiskey que o ajudam a
adormecer ao fim da noite. E a certeza de que o dia seguinte será exactamente
igual ao anterior.
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