quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O Angariador

  - a esperança numa linha branca


 Há qualquer coisa de errado, de partido, nos angariadores daquela casa de fados. Todos têm uma história trágica, e abordar turistas nas ruas pela promessa de 2,50 euros por cabeça é, por vezes, a única forma de terem uma obrigação que lhes mantenha a cabeça ocupada e o sangue-frio.

 Ele continua a viver na mesma casa onde nasceu, perto do Largo do Carmo, mas evita passar lá muito tempo, para não ver o desgosto nos olhos dos pais. Custa-lhe vê-los tão velhos, tão desiludidos, tão preocupados. É fácil de o encontrar a vaguear pelo Chiado e pelo Rossio durante o dia, à espera da hora de ir trabalhar.

 Foi a droga que lhe levou tudo. A inteligência, a auto-estima, a vontade de fazer o que quer que seja. Era bom aluno, mas não acabou o secundário. Entrou em reabilitação diversas vezes, mas recaiu sempre. Esteve anos desempregado, a valer-se dos amigos para fumar, dos pais para comer, dos conhecimentos para beber um copo à noite, de toda a espécie de esquemas para arranjar droga. A cocaína e a heroína destruíram-no por completo – fisicamente, só agora começa a mostrar sinais de envelhecimento, mas por dentro é uma ruína. Procurou o amor em diversas mulheres – todas elas mais velhas, seguras de si, independentes, controladoras. Em nenhuma encontrou o carinho e o apoio que precisava. Ao longo dos anos, vejo o seu olhar tornar-se mais duro e frio, e é cada vez mais raro ver-lhe um sorriso – excepto quando está a trabalhar, que a simpatia é um requisito inevitável no que faz.

 Em tempos, quando o conheci numa tarde cinzenta no Jardim do Adamastor, lia textos budistas e ainda tinha esperança de recuperar e construir uma vida. Ele queria ter filhos, ter um lar. Hoje vê-se que a esperança o abandonou por completo – a sua religião é a sobrevivência: os 2,50 euros por cada pessoa que convence a ouvir uns fados, o cigarro cravado aos conhecidos que encontra enquanto trabalha, as passas num charro que lhe venha parar às mãos, a próxima linha branca tomada na casa de banho de um bar, os copos de whiskey que o ajudam a adormecer ao fim da noite. E a certeza de que o dia seguinte será exactamente igual ao anterior.

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